Novos estudos de psicologia desvendam os mecanismos que levam algumas pessoas a crer mais que outras. Os intuitivos costumam ser mais religiosos que os reflexivos
Espiritualidade: crenças e fé |
Já
ouviu falar daquele louco que acendeu uma lanterna numa manhã clara,
correu para a praça do mercado e se pôs a gritar incessantemente: 'Eu
procuro Deus! Eu procuro Deus!'? Como muitos dos que não acreditam em
Deus estivessem justamente por ali naquele instante, ele provocou muitas
risadas... 'Onde está Deus?!', ele gritava. 'Eu devo dizer-lhes: nós o
matamos - você e eu. Todos somos assassinos... Deus está morto. Deus
continua morto. E nós o matamos...' " A definitiva descrição da morte de
Deus, ideia cunhada por Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciência,
de 1882, é o mais bem-acabado registro do fim de um período em que tudo
era explicado a partir da revelação divina. O racionalismo de Nietzsche
pôs o homem no lugar de Deus, subtraindo do cotidiano a crença no
sobrenatural.
A busca pelas razões da fé, em movimentos de sístole e diástole que
ora nos põem mais próximos a Deus, ora nos afastam dele, é humana,
demasiado humana. Como traduzir algo tão poderoso e impalpável que por
milênios nos move? Enfim, por que alguns creem e outros não?
Convencionou-se imaginar que pessoas menos instruídas tendem a ter
contato mais amistoso com a religião - os mais letrados seriam
majoritariamente céticos, avessos à fé.
Não é assim, necessariamente, e que bom que não seja. Não se trata de
formação intelectual. Um recente estudo conduzido pela Universidade
Harvard, nos Estados Unidos, chegou a uma conclusão bem mais instigante.
O mote: as pessoas intuitivas são naturalmente mais religiosas do que
as reflexivas. Os pesquisadores primeiramente avaliaram a capacidade
intuitiva e reflexiva dos voluntários. Cerca de 1 200 homens e mulheres
com idade média de 30 anos foram desafiados a resolver um questionário
que exige um raciocínio extremamente lógico. Por meio desse teste,
adotado há pelo menos cinco décadas em investigações comportamentais,
aqueles que erram as questões são classificados como intuitivos, por
tentar resolvê-las com pressa, impetuosos. Os que acertam são os
reflexivos, que pensam, pensam e pensam. Em outro momento do estudo,
ambos os grupos tiveram de falar sobre fé. Do cruzamento das respostas,
despontaram as conclusões. Os intuitivos afirmaram ser mais religiosos
que os reflexivos. A premissa faz sentido. Diz o psiquiatra Frederico
Leão, coordenador do Programa Saúde, Espiritualidade e Religiosidade, do
Instituto de Psiquiatria da USP: "É mais simples para os menos
racionais acreditar em algo impreciso".
A intuição e a reflexão são fundamentais no mecanismo cognitivo do
cérebro humano. Os intuitivos tomam decisões a partir de processos que
ocorrem com pouco esforço e atenção. "Eles usam naturalmente a primeira
ideia que vem à mente", diz o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, do
departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e supervisor
do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas. Os reflexivos concentram-se
mais e usam um raciocínio mais elaborado para chegar a conclusões. Não
há como afirmar, portanto, que os reflexivos sejam mais inteligentes que
os intuitivos, apesar de essa ser a impressão inicial. Um pouco antes
da realização do estudo da Universidade Harvard, o mesmo teste de
avaliação cognitiva foi aplicado entre os alunos dos prestigiosos
Instituto de Tecnologia de Massachusetts e Universidade Harvard, nos
Estados Unidos, com o objetivo de avaliar a capacidade lógica de pessoas
tão aptas. Metade dos estudantes errou as respostas. Metade, portanto,
tinha um raciocínio essencialmente intuitivo.
Até muito pouco tempo atrás, seria inimaginável ciência e religião,
duas maneiras de pensar o mundo tão diferentes, caminharem na mesma
direção. Uma das primeiras teorias a pô-las lado a lado é do início de
2000. A fé, assim como as religiões surgidas em torno dela, seria um
ingrediente seminal para a evolução da espécie humana. O homem, o único
ser vivo com a capacidade de ter consciência da finitude, precisaria
recorrer a algo maior e impalpável para conviver com tal ideia. Além
disso, as religiões estimulam a solidariedade e a compaixão, sentimentos
que levariam à proteção em momentos de risco, como procura por comida,
guerras e catástrofes naturais. O biólogo americano David Sloan Wilson,
da Universidade Binghamton, ateu, um dos grandes defensores do papel da
crença em Deus na sobrevivência humana, sustenta que a fé evolui com o
homem porque confere vantagens àqueles que a desenvolvem.
A tese de que a religiosidade acompanha o ser humano em sua evolução
ganhou força ruidosa um pouco mais para a frente, quando o biólogo
americano Dean Hamer, coordenador do setor de genética do National
Cancer Institute, afirmou que a fé em Deus estaria no gene, no "gene de
Deus". Ao avaliar o grau de espiritualidade de 1 000 adultos, Hamer
descobriu uma coincidência: aqueles que tinham sentimentos religiosos
compartilhavam o gene VMAT2, responsável pela regulação das chamadas
monoaminas, grupo de compostos que incluem a adrenalina (substância
excitante) e a serotonina (sensação de prazer). As monoaminas têm papel
importante na construção da realidade e na percepção das alterações da
consciência, situações comuns em experiências místicas.
O rompimento entre ciência e religião não é tão antigo. Ocorreu no
século XVIII, com o iluminismo. Despontado na França, o movimento viu na
razão e no progresso científico um instrumento de emancipação do homem,
pondo os dogmas cristãos em xeque. A Igreja logo reagiu, com a
publicação da primeira encíclica da história. O documento (Ubi Primum
- Tão Pronto Como), assinado pelo papa Bento XIV (1675-1758), reforçou
questões cruciais da Igreja: a rígida formação intelectual dos bispos e a
importância da conduta moral no magistério eclesiástico. O ponto máximo
da cisão ocorreu no século XIX, quando Charles Darwin negou o
criacionismo, definindo a clássica teoria da evolução das espécies.
O papa Pio XII (1876-1958) sinalizou uma reaproximação, em 1943, ao escrever a encíclica Divino Afflante Spiritu
(Sob a Inspiração do Espírito). No documento, ele reconhecia hipóteses
defendidas pela ciência, como a da evolução e a do Big Bang. Agora o
papa Francisco foi além. No fim do ano passado, soltou uma das frases
mais bombásticas de seu pontificado, diante de oitenta pesquisadores de
vários países que compõem a tradicional Pontifícia Academia de Ciências
do Vaticano, instituição fundada em 1603: "Quando lemos no Gênesis sobre
a criação, corremos o risco de imaginar que Deus tenha agido como um
mago, com uma varinha mágica capaz de criar todas as coisas. Mas não é
assim. O Big Bang, que hoje temos como a origem do mundo, não contradiz a
intervenção criadora, mas a exige. A evolução na natureza não é
incompatível com a noção de criação, pois a evolução exige a criação de
seres que evoluem". Há quatro meses, o pontífice argentino utilizou
novamente ferramentas da ciência para lidar com questões religiosas. Na
encíclica Laudato Si (Louvado Sejas), documento que tratou de
questões ambientais, o jesuíta escreveu: "Sobre muitas questões
concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e
entende que deve escutar e promover o debate honesto entre os
cientistas, respeitando a diversidade de opiniões".
A postura de Francisco merece atenção, é corajosa, não aparta
religião de ciência, de modo a não separar fiéis crentes de outros nem
tanto assim. Para uns e outros, prossegue a busca eterna pela
compreensão da fé, de como ela nasce e cresce, para além de constatações
evidentes (como a fé alimentada por uma tragédia familiar). Não há como
explicar o inexplicável, o misterioso, possivelmente porque Deus talvez
seja mesmo um conceito pelo qual medimos e aplacamos nossa dor.
Lembre-se aqui o momento bíblico em que Jesus, no auge do sofrimento
físico e psicológico, pergunta a Deus: "Por que me abandonaste?". Cristo
morreu sem resposta para a sua incerteza. Mas em sua última frase, dita
ainda na cruz, retomou a força brutal da fé: "Nas tuas mãos eu entrego
meu espírito". Jesus Cristo entregou tudo o que tinha a Deus. Até mesmo
sua racionalidade.
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