Nas últimas décadas, pesquisadores submeteram monges e meditadores a baterias de exames para descobrir, afinal, o que se passa no cérebro dos praticantes. Os cientistas descobriram que a meditação provoca um efeito físico na nossa massa cinzenta, o que ajuda a combater a degeneração cognitiva. Áreas ligadas à memória, ao foco e à empatia são estimuladas pelo o hábito da meditação.
O francês Matthieu Ricard estudava biologia molecular quando viajou para
a Índia, em 1967. Por lá, tomou contato com os ensinamentos de líderes
espirituais tibetanos, e algo despertou no seu cérebro. Ricard voltou
para a França e concluiu os estudos.
Chegou a tirar Ph.D. em genética celular e tinha uma carreira promissora
na ciência. Mas, em 1972, aos 26 anos, decidiu voar de novo para a
região do Himalaia para aprofundar o aprendizado nas filosofias
orientais. E vive lá até hoje. O cientista francês se tornou um monge
budista famoso e hoje transita em eventos como o Fórum Econômico de
Davos, dá palestras no TED e lança best-sellers traduzidos ao redor do
mundo – ele seria, inclusive, um dos confidentes do Dalai Lama. A fama
ganhou um empurrão na década de 2000, quando pesquisadores da
Universidade de Wisconsin, nos EUA, convidaram Ricard para participar
uma série de pesquisas sobre seu próprio cérebro.
A equipe liderada pelo neurocientista Richard Davidson colocou 256
sensores na cabeça do monge para medir sua atividade neural com um
aparelho de ressonância magnética. Durante o exame, o monge fazia
sessões de meditação de compaixão, na qual o praticante deseja o bem a
outras pessoas, que duravam três horas. Comparado a voluntários que não
tinham a mesma experiência no método, o cérebro de Ricard produziu uma
quantidade anormal de ondas gama, oscilações eletromagnéticas produzidas
quando neurônios trabalham em sincronia. Cientistas acreditam que essas
ondas estão ligadas à percepção de consciência, atenção, aprendizado e
memória. As medições do cérebro de Ricard foram recordistas: nunca
haviam sido registradas ondas gama tão fortes na literatura
neurocientífica.
Davidson e seus colegas também detectaram uma forte atividade no lobo
frontal esquerdo. A agitação neural nesse determinado ponto do cérebro
do monge, de acordo com os pesquisadores, permitiria a Ricard uma
condição privilegiada de vida: ele se sente mais feliz do que a média da
humanidade e pensa menos em desgraças. Pelo conjunto da obra, o monge
começou a ser perfilado na imprensa internacional nos idos de 2007, com a
alcunha de O Homem Mais Feliz da Terra.
A imprensa adora rótulos e não há como atestar, de fato, o título de
Ricard. Mas, seja como for, o monge passou anos estudando as raízes da
felicidade e conquistou espaço como um dos mais respeitados porta-vozes
do tema no mundo. Para ele, a meditação é uma ferramenta útil para a
conquista do contentamento individual. A pessoa fica tão de bem consigo
mesma que emana alegria e compaixão.
Em 2013, a pesquisadora Gaëlle Desbordes, de Harvard, em parceria com
cientistas da Universidade de Northeastern, divulgou o primeiro estudo a
constatar isso na prática. No experimento, os voluntários meditaram por
oito semanas. Gaëlle estava interessada em descobrir se eles haviam se
tornado pessoas melhores depois do período. Para avaliar isso de forma
isenta, ela contratou pesquisadores disfarçados para seguir os
participantes em vários momentos do dia.
Exames de neuroimagem mostram que áreas cerebrais que se deterioram com a
idade ficam mais protegidas com a meditação. coddy/iStock
A ideia era flagrar alguns episódios nos quais fosse possível constatar
se houve mesmo uma mudança de hábitos espontânea. Comparado a um grupo
que não meditou, a turma da meditação passou a praticar mais atos de
bondade. Como? No ônibus, cediam o lugar aos mais velhos e ofereciam
ajuda a estranhos para atravessar a rua ou segurar compras.
Para Ricard, a meditação é um treino, e a felicidade, o resultado
sistemático de bons pensamentos, princípios e desejos. Só é possível
atingir a excelência com muito exercício, paciência e perseverança. Como
o monge vem praticando há muitas décadas, os exercícios mudaram a sua
mente. Essa transformação está no alcance de todos, segundo pesquisas
científicas – mas no médio e longo prazo. Uma delas foi realizada aqui
no Brasil, no Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo. Os
cientistas fizeram exames de neuroimagem em 39 voluntários.
Aqueles que eram meditadores com pelo menos três anos de experiência
eram também donos de um cérebro mais eficiente em tarefas que exigem
atenção. Durante testes cognitivos, os meditadores acessam um número
menor de áreas cerebrais para fazer a mesma atividade dos que nunca
entoaram um “ohm” na vida, o que indica que eles eram melhores em se
concentrar. A pesquisa também mostrou que existe uma diferença física na
cabeça dos meditadores experientes: havia mais massa cinzenta em áreas
corticais, relacionadas à atenção e ao raciocínio.
Essa eficiência é semelhante às habilidades cerebrais dos músicos, que
precisam sincronizar a mente, a voz e os dedos para cantar e tocar
violão, por exemplo. Músicos profissionais automatizam uma tarefa
altamente complexa e parecem nem pensar mais na performance, uma perícia
que fascina multidões. Nos meditadores, acontece algo equivalente na
busca pelo foco.
QUANTO MAIS, MELHOR
Mas o benefício da meditação vai muito além da agilidade mental. Com o
avançar da idade, a camada mais superficial do nosso cérebro, o córtex
pré-frontal, responsável pelo raciocínio, atenção e lógica, começa a
diminuir. Outras áreas como a ínsula, o núcleo duro das emoções, e o
famoso hipocampo, guardião da memória, também. Continuar ativo
intelectualmente pode até atenuar esse impacto da velhice, mas até pouco
tempo atrás os cientistas desconheciam remédios ou exercícios que
realmente reduzissem o efeito do tempo na mente. Até que um experimento
feito na Universidade Harvard trouxe a meditação de volta aos holofotes.
Divulgada em 2014, a pesquisa, capitaneada pela neurocientista Sara
Lazar, mostrou que o mindfulness funciona como um antídoto contra o
envelhecimento cognitivo. A equipe de Sara fez exames de neuroimagem em
meditadores adultos de meia-idade e verificou que eles tinham uma
capacidade cognitiva igual à de jovens de 25 anos. Os praticantes tinham
mais neurônios. É um achado exuberante. Isso porque o encolhimento do
hipocampo, por exemplo, está associado a várias doenças, desde a
depressão até demências.
Um dos primeiros cientistas a se interessar pelos efeitos da meditação
na saúde, o norte-americano Andrew Newberg começou a investigar a
prática justamente atrás de um método contra a deterioração mental. Para
testar o efeito das técnicas, o pesquisador recomendou a meditação de
Kirtan Kriya a um de seus pacientes que chegou ao seu consultório
reclamando que a cabeça havia começado a falhar. Na Kirtan Kriya, o
indivíduo tem de repetir o mantra saa, taa, naa, maa, que pode ser
pronunciado em voz alta, em silêncio ou incorporado a uma música.
As sílabas se referem aos sons considerados primordiais para os hindus.
Saa é infinito; taa, vida; naa, morte; e maa, renascimento, em
sânscrito. Ao mesmo tempo que entoa o mantra, é preciso fazer movimentos
ritmados com os dedos. Na sílaba saa, deve-se tocar o dedo indicador no
polegar; em ta, o dedo do meio; em naa, o dedo anelar; e em maa, o dedo
mínimo no polegar, e repetir a operação por até 12 minutos, todos os
dias, se possível. O praticante deve pressionar as pontas dos dedos umas
contra as outras ao ponto de deixá-las levemente esbranquiçadas. Esse
tipo de gesto é chamado de mudras na tradição asiática.
O monge francês Matthieu Ricard foi considerado o homem mais feliz do
mundo depois que cientistas descobriram que seu cérebro, moldado pela
meditação, tem atividade neuronal recordista. FactoryTh/iStock
Durante dois meses, o paciente de Newberg repetiu diariamente, durante
12 minutos, o mantra saa, taa, naa, maa. Depois desse período, voltou ao
consultório do médico sentindo-se “outro homem”, conforme seu relato
pessoal. É claro que a percepção do próprio paciente é importante, mas
Newberg o submeteu a uma nova ressonância para ver se havia uma mudança
cerebral que justificasse a euforia toda. O exame comprovou que houve de
fato uma alteração detectável. As imagens mostraram que o córtex
pré-frontal estava bem mais ativo do que antes.
Mas outras áreas também tinham ganhado mais massa cinzenta. O córtex
cingulado anterior, envolvido na regulação emocional, no aprendizado e
na memória, estava mais alerta. Segundo Newberg, essa área é
particularmente vulnerável ao envelhecimento. Pacientes com Parkinson e
Alzheimer, por exemplo, apresentam uma atividade metabólica menor nessa
região. Além disso, o cingulado anterior tem um papel preponderante na
redução da ansiedade e da irritabilidade e no aumento da empatia. Em um
teste, que consistia em um jogo para ligar os pontos, a melhora da sua
performance comparada ao início do tratamento foi de 50%.
BARATO CARETA
Newberg sabia o que estava fazendo quando prescreveu meditação a seu
paciente. Em 1999, o pesquisador havia feito um experimento inovador
para a época. Submeteu monges e freiras a um exame chamado de tomografia
computadorizada por emissão de fóton único, ou SPECT. Nesse tipo de
teste, o voluntário recebe a injeção de uma substância radioativa que
colore as áreas cerebrais conforme a intensidade do fluxo sanguíneo.
Mais sangue circulando em determinada região significa uma atividade
mais intensa.
Quando estavam entrando em estado contemplativo, os monges tinham de
puxar uma cordinha. Esse era o aviso para que o cientista injetasse a
substância. Um minuto depois, as imagens cerebrais apareciam coloridas
no monitor. O lobo frontal, ligado à concentração, ficou vermelho
brilhante, o que indicava uma intensa atividade. A meditação requer foco
e concentração – ao contrário do que muitos pensam, é uma atividade
mental intensa e não um relaxamento.
Por outro lado, o lobo parietal ficou azul, com a atividade reduzida.
Essa área do cérebro é o nosso GPS pessoal, ou seja, localiza nosso
corpo no espaço. Sem essa percepção, perdemos as coordenadas básicas de
onde estamos. Na leitura de Newberg, a redução de atividade nessa área
indicava que meditadores experientes perdem a noção de individualidade,
do espaço e do tempo. “Você se torna um único ser com Deus ou com o
Universo”, disse Newberg.
Trata-se, na visão do cientista, um estado puro de autotranscendência.
Essa pode ser uma das explicações para a fama de Matthieu Ricard como O
Homem Mais Feliz do Mundo – a meditação é, essencialmente, um barato sem
drogas ou efeitos colaterais.
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