A
Iniciação, nas várias Religiões Afro-Brasileiras, tem em comum
apresentar ao neófito os “fundamentos” ou ensinamentos basilares,
esotéricos que são vivenciados por intermédio de vários ritos de
fundamento. O Bará, em sua delicada tessitura ritualística, é de transcendência similar ao Ori; associa-se ao elo de comunicação, a fala, a reprodução, ao sexo e equilíbrio fisiológico e energético do corpo físico visível e invisível, portanto associado a Exu (equilíbrio biopsicossocial). Necessário
dizer-se que o conceito é apresentado de forma generalista, e cada
Religião Afro-Brasileira tem seus aspectos particulares, transmitidos e
ritualizados segundo suas vivências e práticas tradicionais.É desta interface Ori-Bará, do Bará como manifestação ou emanação do Ori que versará o vídeo apresentado nesta publicação.
O conceito de Ori é importantíssimo, mormente por relacionar-se com a consciência, inteligência, processos cognitivos e, principalmente espirituais (energias sutilíssimas e sutis) que só sacerdotes consumados sabem como fazer as devidas “amarrações” com as vibrações positivas do universo, com os Senhores Estruturantes do Universo – os Orixás e seus Ancestrais Ilustres. As doenças
físicas são resultados da instabilidade, desequilíbrio e desarmonia do
indivíduo consigo mesmo, com sua ancestralidade, com seus Orixás e,
principalmente com seu Ori (destino). Nesse sentido, as doenças podem ser
entendidas como a não percepção da integração do homem com ele próprio, com
seus pares, com a natureza física e o sobrenatural.
No painel das
religiões afro-brasileiras, embora não se fale em mente e corpo, ao grassar a
unidade Ori-Bará, reforça-se a não dualidade e também que a energia da mente
não provém do corpo. Nós não saberíamos onde começa o Espírito e termina a
matéria e vice-versa já que para as religiões afro-brasileiras, há planos de
existência para uma mesma realidade (continuum). Exu, o que dá o poder dinâmico da vida, é responsável por ajustar o
trânsito do passado, presente e futuro com a finalidade de reuni-los, ou seja,
ir ao encontro da Origem, ou, dos nossos Genitores Divinos, Orixás, Inkices e Voduns.
E no corpo físico a cabeça é a manifestação da mente e cada região
está associada a um período de nossas vivências (passado, presente e futuro), ou
seja, embora o Ori seja um só, temos em nós mesmos o passado, presente e
futuro.
Ao remontarmos
a questão da não percepção do homem é importante pontuarmos que para as
religiões afro-brasileiras os indivíduos sabem que estão vivos porque possuem o
“exu no corpo” – princípio de individualização (Baraiye). As religiões
afro-brasileiras possuem maneiras específicas de lidar com as questões
relativas ao equilíbrio e desequilíbrio do indivíduo. Para melhor entendermos a
perspectiva afro-brasileira convém destacarmos que acima de tudo elas não
possuem uma visão fragmentária da realidade, ao contrário, compreendem a
realidade espiritual e material como uma só, sendo esta última manifestação da
primeira. A teoria relacionada com a ciência
afirma que tudo provém do corpo, já as dualistas afirmam que a coisa mente é de uma substância
diferente da coisa corpo. Nós não
contrariamos as teorias, mas em nossas especulações afirmamos que não há
dualidade.
Atualmente os processos
mente-corpo vem sendo estudados de forma transversal pela psicologia,
antropologia, neurociências, filosofia, em suas várias teorias e também por
religiosos nas teorias ditas dualistas. Para as religiões afro-brasileiras o corpo é manifestação da mente
via sistema nervoso central onde o cérebro, embora seja um órgão nobre, é
somente um instrumento (efeito) da mente (causa). Nas próximas publicações
continuaremos as especulações aqui citadas. A cosmovisão
das religiões afro-brasileiras afirma que vive-se ao mesmo tempo em duas
dimensões diferentes: Orun (espaço sobrenatural) e Aiyê (espaço natural), mas
que são apenas visões e percepções diferentes da mesma realidade, ou seja, o
Aiyê (corpo físico) é manifestação do Orun (mente).
O indivíduo
quando não absorve a contento, o mesmo acontecendo com a manutenção,
multiplicação e a renovação do axé, perde o equilíbrio da mente (enfraquece o
Ori), perde a estabilidade afetivo-emocional (enfraquece o Okan e tudo que dele
decorre) e a harmonia física e social (O Ará propriamente dito como um todo e
seu convívio salutar com a sociedade é profundamente prejudicado). Asaúde e doença e suas relações com o axé (Princípio Vital), “maná”
fundamental na manutenção do equilíbrio, da harmonia e estabilidade do complexo
mente-corpo-sociedade ou dos aspectos naturais e sobrenaturais.
O
desequilíbrio, a instabilidade e a desarmonia deflagrados pelo indivíduo
carente de axé (do relacionamento efetivo com seu Genitor Divino) são as causas
das doenças, portanto, devida aos doentes (indivíduos) que desencadeiam doenças
via mente, para o organismo todo e para a desastrosa convivência em sociedade
(carência afetiva, econômico-financeira, etc). Acreditamos que há necessidade de aspectos profiláticos ou
preventivos, os de manutenção e os de, quando necessário, de reparação ou
tratamento não só nos efeitos, mas
fundamentalmente nas causas (no próprio indivíduo carente de axé, com
repercussões mais ou menos sérias ou agravadas pela não atenção ao seu Iwá
(destino) desencadeando um equivocado sentido a vida (Abá).
As doenças
físicas são resultados da instabilidade, desequilíbrio e desarmonia do
indivíduo consigo mesmo, com sua ancestralidade, com seus Orixás e,
principalmente com seu Ori (destino). Nesse sentido, as doenças podem ser
entendidas como a não percepção da integração do homem com ele próprio, com
seus pares, com a natureza física e o sobrenatural. No corpo físico a cabeça é “sede” da
mente. Segundo as religiões
afro-brasileiras, a cabeça relaciona-se ao Ori. A região posterior occipital
(nuca) relaciona- se ao passado. Chama-se ipako ori e está relacionada ao
Inconsciente manifesto nas experiências adquiridas. A região frontal da
cabeça relaciona-se ao futuro. Chama-se oju ori e está relacionada ao
Supraconsciente, “contendo” as atividades sublimes que iremos conquistar.
Os sonhos são também
momentos de remontar ao passado de cada um. A fim de corroborarmos nossa
assertiva trazemos para a discussão o sociólogo Roger Bastide, cuja abordagem
adquirida do famoso psicanalista vienense, Freud, afirma que o inconsciente
teria se formado “com o passar das eras de sedimentos lentamente sobrepostos
uns aos outros e compactados pelo peso de todos os séculos; como se houvesse,
em nossa alma desconhecida, camadas análogas às camadas geológicas, onde jazem,
fósseis, as lembranças de vidas extintas. E então, durante o sono, desceríamos
até a caverna, cavaríamos com paciente picareta um poço, a cada noite mais
fundo (...)” (Bastide, 2006, p. 33).
Entre as duas regiões
citadas encontra-se o ori propriamente dito e está relacionado ao presente. É
nessa região que é feita a raspagem e cura
(corte da Iniciação, em algumas Escolas) justamente porque relaciona-se ao
nosso Consciente e, portanto, com tudo que diz respeito ao poder da nossa vontade
para as aquisições de hoje. Os rituais
afro-brasileiros tem a capacidade de agir como a picareta, cavando nossas
vivências do inconsciente superficial.
Os sacudimentos ou ebós
seguidos de Bori são exemplos de rituais destinados a esse fim. Os sacudimentos
e ebós limpam, descarregam todas as negatividades do indivíduo. Após essa
limpeza, em um segundo momento, o ritual de Bori visa reconstruir um Ori
fortalecido. Tais rituais são constantemente refeitos pois os indivíduos, mesmo
os já iniciados, precisam aprofundar-se em seu Inconsciente (penetrando e
refazendo o destino). Se colocássemos os três
tempos míticos em sequência em um círculo veríamos que o passado e o futuro “se
tocam”, ou seja, o Inconsciente que guarda nossa origem é o mesmo do nosso
futuro. Assim, vários rituais das religiões afro-brasileiras tem por objetivo
fazer com que o indivíduo atinja “espaços” mais profundos do seu Inconsciente,
mais próximos de sua origem (seu estado de equilíbrio, harmonia e estabilidade),
pois cremos que nele (Inconsciente profundo) está a Espiritualidade latente,
porém, esquecida ou encoberta por tantos sedimentos sobrepostos durante séculos
de nossas existências (Inconsciente superficial).
A cura e autocura afro-brasileira, portanto, não visam a
um indivíduo apenas, pois ainda que cada ritual seja pensado e aplicado na
dependência das particularidades de cada indivíduo, ao final de cada ritual,
toda a comunidade sai fortalecida uma vez que estão irmanados em uma comunidade
de santo e, pelo princípio de interdependência (pela redistribuição de axé) que
rege a ética dos terreiros afro-brasileiros, todos recebem um saldo positivo. Os problemas da humanidade não foram resolvidos,
vivemos um momento planetário de muitas mudanças e redefinições do ciclo
evolutivo dos seres humanos e, justamente, nessa fase as pessoas tem se apegado
muito às religiões pela capacidade delas de possibilitar um caminho para o
reencontro com o Sagrado.
O conceito de corpo
está intimamente relacionado ao processo de cura já que este é um dos motes das
religiões afro-brasileiras, possibilitar que os filhos de santo entrem em
contato com sua ancestralidade e sintam-se melhores e ativos, em equilíbrio,
harmonia e estabilidade, na sua cotidianidade. Assim, o corpo é sagrado. Longe de nós vermos o
corpo como um elemento negativo. É ele que nos possibilita vivenciar o momento
ápice da experiência religiosa afro-brasileira: o transe, seja este de
possessão ou mediúnico.
Os
sentidos (visão, audição, tato, paladar, olfato) são portas de acesso à outros
estados de consciência. Por isso, nos terreiros há defumações, ervas,
oferendas, ritos de fundamento, bebidas e comidas de santo, entre tantos outros
elementos que fazem parte de um arsenal simbólico que atua diretamente na
constituição bio-psicossocial do indivíduo, sendo o corpo e mente apenas
manifestações do ser espiritual. Nas Religiões Afro-brasileiras/Americanas
aprendemos por intermédio de itanifás, mitos, diálogo com os ancestrais
ilustres (Caboclos, Pretos-velhos, Encantados, Exus e outros) que a mente
fechada nos traz ignorância; a palavra mal direcionada pode nos levar à ira ou
aversão, o mesmo acontecendo com as atitudes que podem ser produtos de nossos
apegos.
Aqueles acostumados com as Tradições
Afro-ameríndias não terão a menor dificuldade de perceber, e os que não estão
também, de que falamos de fundamentos de suma importância. Sim, citamos cabeça
– que associamos a Ori (Consciência/Destino); Coração (Okan) associado ao Emi
(alma) e por último, os membros inferiores (pernas – pés) relacionados ao movimento
dado pelo próprio destino, ou melhor, os caminhos que viemos a tomar – onan
burukú (maus caminhos) ou onan rere (bons caminhos).
E por intermédio de nossos Orixás ou
Ancestrais Ilustres podemos cambiar ignorância por sabedoria; ira ou aversão
por atração positiva ou amor e os apegos por ações positivas em nosso benefício
e de toda a comunidade a que estamos inseridos.
Os pensamentos associamos à cabeça (Ori). Os
sentimentos ao coração. As atitudes ou ações e reações comportamentais
associamos ao abdome e membros inferiores. No término desse texto esperamos que todos
tenham percebido o quanto as Religiões Afro-brasileiras/Americanas, por
intermédio dos Orixás e Ancestrais Ilustres, nos demonstram os Onan rere a
seguir, retificando o destino, afirmando que todos podem fazer um bom destino,
e só querer. Isto é, os aspectos
negativos ou positivos do caminho que escolhemos, mas que uma consulta a
Orunmilá-Ifá ou aos Ancestrais Ilustres, poderemos retificar, resignificar
nosso destino – o bom destino.
O amanhã é muito
importante, mas mais do que ele é o hoje, o aqui e agora. Sim, façamos o hoje o
melhor possível e teremos um amanhã melhor ainda. E as Religiões Afro-brasileiras/Americanas, por
intermédio dos Orixás e Ancestrais Ilustres, nos demonstram os Onan rere a
seguir, retificando o destino, afirmando que todos podem fazer um bom destino,
e só querer.