“Certamente,
há mais de dois mil anos as religiões de matriz africana já precediam o
próprio Cristianismo”, afirma o antropólogo Raul Lody, autor de livros
sobre o tema. O desenho é do argentino-baiano Carybé e nos mostra a
Festa do Pilão de Oxalá.
O juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17º Vara Federal do Rio, voltou
atrás apenas em sua enviesada definição sobre religiões, mas manteve a
decisão: quem prega a intolerância contra as minorias religiosas
afro-brasileiras, pode pregá-la livremente, em nome da liberdade de
expressão. Pode? Como representante do Estado, que garante a ordem e a
igualdade de todos perante a lei, o juiz deveria proteger os que mais
precisam (e não há nenhum “coitadismo” aqui). Quando ele se atém,
estritamente, ao viés jurídico, torna-se precário o julgamento de
situações subjetivas, como no caso. A legalidade da liberdade de
expressão – nosso bem tão precioso! — também tem um limite: é quando
deixa de ser expressão para se transformar em propaganda, visando
destruir ou capturar o outro. Senão, vejamos: a propaganda nazista não
respeitava direito algum, já que, à época e dentro do território
germânico, o nazismo era considerado uma… legalidade. Era?
Quem lembra esta realidade é o filósofo inglês George Steiner em seu livro
Nenhuma Paixão Desperdiçada:
“O Estado-nação ergue-se sobre mitos de instauração e de glória
militante. Perpetua-se por meio de mentiras e meias-mentiras.(…) A única
cidadania que o intelectual reconhece é a do humanismo crítico. Ele
sabe que o nacionalismo é uma espécie de loucura, uma infecção virulenta
que leva a espécie humana ao massacre mútuo”.
O nacionalismo é aqui tomado como a exclusão do outro, seja por
razões de busca de uma ”raça pura”, seja por razões de imposição de uma
religiosidade única. A decisão do juiz mantém o direito de alguém
“falar mal” do outro. Como posso dizer que o ideal do outro –
representado pela religião – não presta só porque tenho uma visão
diferente da vida ou da divindade que venero? Em política, podemos falar
de um embate entre visões diferentes, porque é legítimo que um partido
brigue para alcançar o poder; no entanto, é ilegítimo que alguém brigue
para impor sua visão religiosa. É o que nos assevera o professor de
História das Religiões, Giuseppe Bertazzo:
“A história, a antropologia e a genética ensinam que não existe “raça
pura”. Querer encontrar uma religião “pura” é também algo não
aconselhável. A não ser que você queira considerar a religião
etnocêntrica, a de um povo que se coloca em contraposição aos
“inimigos”. Até a religião hebraica, em seu início, considerava Jahvé
(ou Jeová) seu deus exclusivo, em contraposição aos outros. Felizmente,
aos poucos abriu-se para um monoteísmo que caminhou, pelo que conhecemos
pelas palavras do profeta Isaias, uns 500 anos antes de Cristo, para a
concepção de um deus preocupado com os mais fracos. Ao enunciar o
projeto de sua missão, Jesus Cristo serviu-se da palavra de Isaias. Sem
esquecer que a mesma Bíblia contém elementos, visões e narrações
anteriores que encontramos no Egito e na Mesopotâmia antigos; o
cristianismo e o islamismo beberam nessa fonte de deversidades
culturais. Em determinados momentos históricos também as religiões as
religiões se mesclaram diretamente ao Poder, servindo como
justificativa para ditaduras e proteção dos poderosos. Eu admiro demais
Jesus Cristo que falava que a Justiça não podia ser apenas a dos
fariseus, que só impunham obrigações, mas deveria ir além: olhar
diretamente para as necessidades das pessoas. O mesmo Estado,hoje, deve
se voltar para quem mais precisa; no caso, as religiões
afro-brasileiras, que não querem dominar a sociedade.”
Assim, devermos ir além da literalidade da lei para olharmos as
singularidades da herança histórica brasileira: uma radiosa mistura.
Raul Lody, que dedicou sua vida ao estudo das religiões africanas, pode
nos iluminar:
“Na formação de povo brasileiro, os Yorubá, os Fon, os Ewe; as
civilizações dos povos Bantu e da África oriental abastecem de histórias
religiosas o nosso entendimento de fé, de sagrado, de memórias míticas;
e de inúmeros conhecimentos culturais agregados à música, à dança, à
comida, e ao idioma, entre outros. Organizadas, hierarquizadas,
sistematizadas em rígidos preceitos litúrgicos; detentoras de
calendários religiosos; também mantenedoras de amplo e rico acervo
cultural de povos africanos no Brasil, são o Candomblé nas suas Nações
Ketu, Nagô, Jeje, Angola, Angola-congo, Gexá, Moxicongo em todo o
Brasil; O Xangô, no Nordeste; o Mina-jeje e o Mina-nagô no Maranhão e na
Amazônia; o Batuque, e as suas muitas Nações no Rio Grande do Sul; e a
Umbanda. Essas religiões têm o reconhecimento do Estado nacional por
meio do “tombamento” como Patrimônio Nacional (IPHAN), que assim
demonstrou a importância dessas religiões tão organizadas quanto as
demais que convivem no nosso Estado democrático.”
Há um ponto em comum que une Steiner, pensador da origem das
linguagens, a Lody e Bertazzo: o da aceitação das diferenças, o da
não-exclusão, o do convívio dos contrários. A ideia é a de que você faz
parte de um mundo maior de culturas distintas, que se entrecruzam e se
ampliam, abrindo horizontes, sempre enriquecedoras. Ou, como na visão do
poeta Drummond: “Amor é o que se aprende no limite”. Aprender a amar a
si mesmo, de pronto, é conhecer seus próprios limites.
Fonte/http://veja.abril.com.br/blog/leonel-kaz/