Arte: Ilustrador baiano mistura influências diversas para desenvolver trabalho sobre Orixás - Foto: Tiago Dias / Bahia Notícias |
Sobre os orixás
O ilustrador baiano Hugo Canuto mistura influências que vão do desenhista norte-americano Jack Kirby ao etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger para desenvolver seu trabalho. “O quadrinho é um caminho entre a comunicação e a expressão artística”, opinou em entrevista ao Bahia Notícias no último dia 17 de janeiro. Na ocasião, Canuto comemorava o sucesso da campanha de financiamento coletivo de sua próxima obra “Contos de Òrun Àiyé”, série de HQ's inspiradas nos Orixás, sem esquecer seu passado recente como arquiteto vinculado ao funcionalismo público. “Foi um período muito bom, tive minhas realizações, e que contribuiu para meu trabalhar hoje com o tema dos Orixás. Inclusive, trabalhava na Conder quando chegou ao meu setor aquele caso da depredação da Pedra de Xangô por radicais em 2014”, recordou. O artista também avaliou o atual momento do mercado de quadrinhos nacionais e o aspecto da representatividade na cultura pop.
Aos 10 anos de idade, você já tinha lido Lendas Africanas dos Orixás, clássico do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger. Em relação aos quadrinhos, Jack Kirby foi uma influência, passando por quadrinistas europeus e a obra de Edison Carneiro (escritor especializado em temas afro). Gostaria que você falasse sobre a sua formação acadêmica, e de como essas referências entraram na sua vida.
Minha formação oficial é como arquiteto da Faculdade Federal da Bahia. Trabalhei muitos anos como arquiteto, mas eu levei a arte por muito tempo em segundo plano porque a gente cresce ouvindo que não dá dinheiro e que isso não é vida. Ainda mais na Bahia. Às vezes, a maior realização de determinados pais é ver o filho funcionário público. Eu fiz concurso público. Inclusive, quando eu decidi me dedicar completamente a arte eu estava ocupando um cargo público, mas esse chamado, essa vocação, veio como uma forma de saber até onde eu poderia ir como artista e contador de histórias. O quadrinho é um caminho entre a comunicação e a expressão artística. Em 2012, eu fiz um curso de duas semanas em São Paulo que abriu a minha cabeça. Cheguei na Quanta Academia de Arte e vi que as pessoas trabalhavam com isso e viviam disso, que elas produziam a partir daquilo que elas gostavam com quadrinhos, animação.
Eu tenho 30 anos, e a formação da minha geração aqui sempre foi muito autodidata. Meus amigos que sempre fizeram quadrinho aqui são autodidatas, não teve uma escola. E a gente sempre debate que criar uma escola aqui seria lindo para explorar o nosso potencial criativo, com as histórias que nós temos e precisamos contar. Descobri isso quando fui para São Paulo. Isso mexeu muito com a minha cabeça, mas passei mais uns três anos como arquiteto ainda. Foi um período muito bom, tive minhas realizações, e que contribuiu muito para eu trabalhar hoje com o tema dos Orixás. Inclusive, trabalhava na Conder quando chegou ao meu setor aquele caso da depredação da Pedra de Xangô por radicais em 2014. Eu comecei a participar das reuniões, porque parece que a Conder era dona do terreno na época e queria fazer um parque, e pessoas de movimentos e religiões de matrizes africanas participavam delas. Nessa época eu comecei a tratar com essas questões no dia-a-dia, para além da fé e cultura, e entender que ainda hoje existe um conflito religioso muito grande nas periferias. Mas enfim, chegou um período que eu não estava mais satisfeito e muito por causa de "Contos de Mayrube", que era um projeto que eu tinha anos arrastando e não conseguia concluir. Deixei esse cargo, fui estudar em São Paulo e trabalhar como artista lá para entender como as coisas funcionavam. Passei quase dois anos lá e lancei "Mayrube". Essa foi a minha transição para trabalhar integralmente como artista.
Sobre as minhas influencias, como eu disse anteriormente, minha geração é muito autodidata. Hoje as coisas mudaram muito com a internet, mas eu tinha que comprar quadrinho no sebo que tinha na Estação da Lapa, na Coringa (que ficava na Carlos Gomes) e na Mutantes (que ficava no Largo Dois de Julho). Eu ia cavando esses quadrinhos da década de 1970 e 1980 que tinha uma estética que me agradava e era diferente do que era comum na época, que eram os heróis “bombados” em histórias sem cérebro da Image Comics. Eu tive um grande amigo que depois se tornou meu professor de faculdade, o Marcos Queirós, que era mais velho e amigo do meu pai. Ele era fã de quadrinhos e encadernar as edições que tinha. Ele me dava encadernados do Batman e do Superman dos anos 1970 da Ebal (Editora Brasil-América Limitada) para ler, por exemplo. A partir daí, comecei a formar meu repertório com mestres que desenhavam muito como John Buscema e Jack Kirby. Aquilo me fazia pirar porque Kirby trabalhava com mitologia, que é uma paixão que eu tenho desde criança. Eu não costumava desenhar o homem aranha, mas sim o Thor, os Eternos e os Novos Deuses, que nunca foram do mainstream. Quem criou os conceitos do quadrinho americano foi Jack Kirby. Tudo isso pirava muito a minha cabeça. Para além disso, os quadrinhos europeus também sempre foram uma influência, gente como Moebius e Sergio Toppi, artistas entre o mais iconográfico, sintético e realista.
Você falou anteriormente de "A Canção de Mayrube", um trabalho no qual você explora as mitologias que formaram a América e que tomou nove anos da sua vida. Para fazer esta obra, você precisou estudar a mitologia dos iorubás, por exemplo. Com o distanciamento do tempo, de que maneira você acredita que esse trabalho anterior acabou te ajudando a amadurecer ideias que você propõem em "Contos de Òrun Àiyé"?
"Mayrube" surgiu em 2007 ou 2008. Como alguém que gosta de mitologia, que leu o "Senhor dos Anéis" e adora toda essa coisa de fantasia épica, me inquietava o fato de não ter nada nesse sentido com a cultura brasileira. Na época não tinha nada, e eu comecei a construir "Mayrube" através disso. Era uma história que eu comecei a pesquisar e tentar entender lá em 2007 e 2008. O que mexeu muito comigo foi uma viagem que fiz em 2007, quando estava no primeiro ano da faculdade de arquitetura, para Mirandela que é a aldeia indígena do povo Kiriri, que fica no sertão perto de Banzaê e Ribeira do Pombal. Eu nem sabia que existia índio no nordeste da Bahia. Fui com aquele meu amigo, Marcos Queiros, meu pai e uma colega minha. Passei uns dois ou três dias lá, e o que mais me impressionou foi descobrir que meu avô, pai de minha mãe, nasceu lá quando eu voltei. Ele me contou isso já aos 96 anos. Isso mexeu muito comigo, a coisa da identidade. Nós não sabemos quem são os nossos antepassados no Brasil. A partir daí eu comecei a pensar no projeto, pesquisando. Eu tenho um universo pronto, com mais de mil páginas de conteúdo. Eu estava inclusive escrevendo um livro agora em agosto quando fui atravessado por essa ideia dos Orixás e parei. Mas "Mayrube" é universo que eu construí através de referências. Em 2011, eu fiz intercâmbio para a Espanha para me formar, e tive um contato ainda maior com as culturas e arquiteturas Incas e Astecas. Bem ou mal, o acervo está lá, e isso foi enriquecendo o meu repertório. O que é essencial já que eu ainda quero escrever essa história que remete a formação da América Latina. Essa estrutura grandiosa parece arrogante, mas a ideia é criar uma civilização miscigenada dentro do contexto de fantasia, que é e sempre foi muito eurocêntrica. Tolkien não tem negro. É legal, mas não mexe comigo, eu não vejo os nossos elementos. Não estou criticando, entendo que é o contexto dele. Agora, temos que fazer o nosso. O Game of Thrones do George R.R. Martin é muito mais diverso, o que é um sinal dos tempos, graças a Deus. As civilizações daquele mundo têm uma diversidade maior, mas ainda assim não são o centro daquelas histórias. Então, "Mayrube" sempre foi esse sonho que ainda está acontecendo. A pesquisa sobre a cultura iorubá entrou nesse contexto. O que eu ganhei muito pesquisando para esse trabalho ao decorrer desses anos foi que, por exemplo, quando eu parti para pesquisar sobre os Orixás eu tinha uma sistematização do que eu iria fazer, das etapas e do que eu iria fazer. "Mayrube" foi um universo que eu criei a partir de uma costura de culturas. Os "Contos de Òrun Àiye", não. É uma obra inspirada nas narrativas dos Orixás, e existe um limite muito claro do que eu posso ou não fazer. Me aconselharam a ficar restrito aos mitos, sem entrar em questões que envolvem os rituais. Tenho alguns consultores que me orientaram a pegar as histórias e trazer para a linguagem, contando dentro de uma estética, mas deixando de fora certas questões. Eu falei para eles que o que não me contassem o que não poderia ser explorado porque a cabeça no processo criativo absorve as coisas como uma esponja, até inconscientemente. Existe essa coisa delicada que precisa de um cuidado. Tanto que quando esse projeto começou a reverberar na internet, a primeira pessoa com quem conversei foi Russo Passapusso. Ele me alertou sobre o tema mexer com diáspora, hiperlink, e disse para eu ter cuidado com quem me procurasse para falar do assunto, que eu pedisse sempre que fosse feito de uma maneira responsável. Eu estava começando e essa conversa sempre meio que norteou esse projeto.
A tradição de religiões de matrizes africanas está muito ligada à oralidade. Dessa maneira, existe uma dificuldade de existirem relatos precisos das histórias que envolvem essas religiões com um todo. Qual estratégia você usou já que não existe no Brasil esse registro histórico para imprimir nos seus quadrinhos algo que remeta à essa historicidade dos Orixás e da própria construção da mitologia?
Minhas fontes são Verger, Reginaldo Prandi, José Beniste. Verger, por exemplo, fez toda essa coleta da história da África no Brasil. Eu me atenho muito aos escritos porque é onde eu posso, diante de uma escolha, dizer "olha, eu fiz dessa maneira porque nesse relato estava assim". Eu não me atenho ao cara me contar uma coisa porque existem muitas versões. Então, eu me atenho mais aos escritos. Por exemplo, existe o livro de um antropólogo baiano, o Fábio Lima, chamado 'A Diáspora e Ancestralidade". Ele esteve na Nigéria, e há relatos interessantes dele lá. Ele fala algo muito bonito: "No final entendi que a África que nós sonhamos está aqui na Bahia". A de lá não é mais a que a gente imagina. Então, é importante entender essa visão do orixaismo lá. Eu pego muito desses autores consagrados. Não trabalho em cima da obra de um específico porque acredito que seria até um plágio, mas eu trabalho com referências.
Quando você começou a produzir material abordando a temática não havia uma oferta tão grande de obras e autores trabalhando esses aspectos da nossa cultura. Contudo, houve uma mudança de cenário nesse sentido. Dos materiais produzidos para literatura ou quadrinhos, existe algum que tenha te conquistado de uma maneira especial?
Acredito que ainda existam poucos. Esse ano nós estivemos na Comic Con Experience (CCXP) e foi possível ver o quanto a cultura brasileira não penetra em certos espaços. A cultura Negra, Afro, Indígena e Luso Brasileira não penetra. Eu ficava observando vários artistas brasileiros só vendendo desenho do Batman, Superman e Mulher Maravilha. Você vai conversar com o cara e ele responde que só faz aquilo porque é o que vende no final das contas. Eu não tenho nada contra, até gosto, mas não desenho super-heróis. Meu tempo é curto, e ou eu desenho algo que eu identifico como meu ou escolho desenhar algo que é copyright de outro cara. Não estou criticando, a base da minha formação como artista foram esses gibis, mas é uma opção minha. Lá esse ano tinha, além de mim, o Alex Mir e o Caio Majado. Eles sim pioneiros que lançaram lá em 2010 o "Orixás - do Orum Ao Ayê", o primeiro quadrinho com a temática, se não me engano. Tinha um outro rapaz também, cujo nome me esqueci, que estava lançando um quadrinho fantástico chamado "Zé Pelintra", sobre o Exu na visão da Umbanda. Haviam outros caras com quadrinhos de temática indígena, mas éramos uns 10 em um universo de 500 artistas produzindo algo ligado à essas temáticas. Outro cara que é uma influência para mim é o PJ Pereira, autor de Deuses de Dois Mundos. Conversei brevemente com ele logo no início do projeto e ele me deu muitos conselhos.
Para concluir, eu gostaria que você avaliasse o contexto atual do mercado de quadrinhos brasileiro.
Houve uma explosão nos últimos sete anos. Os custos baixaram, o acesso a editoração, fechamento de design etc. As pessoas se qualificaram e muitos artistas independentes acabaram surgindo. Inclusive, movimentos feministas e LGBT's ganharam visibilidade e contando outras histórias. O Brasil sempre teve o grande problema de só absorver, e hoje muito menos, quadrinhos de super-heróis. O quadrinho europeu, que tem uma qualidade narrativa e estética impressionante, não entra aqui. Também existe a questão do álbum ser caríssimo de produzir. Então, nós fomos mal alimentados por muito tempo, e a tendência era reproduzir essas coisas. Depois veio o Mangá, que já abriu mais o nosso repertório e hoje está lindo de ver. Para você ter uma noção, em 2016, o Brasil produziu cerca de dois mil títulos diferentes. A França, que é o maior mercado do ocidente, lançou seis mil títulos no mesmo período. A diferença é que eles têm editoras e toda uma estrutura comercial. Aqui nós temos dois mil produzindo como eu, através de financiamento coletivo e engajamento do público, meio que empreendendo no risco de fazer e com algumas editoras mais sérias. Ainda é algo muito pulverizado, com produções muito individuais. O que impulsiona são eventos como a Gibicon (em Curitiba) e CCXP (em São Paulo), por exemplo. Então, cresceu muito, mas ainda falta ganhar musculatura no quesito de distribuição pelo país, por exemplo. Contudo, isso é natural. Nos Estados Unidos, até hoje, as editoras tem dificuldade com isso. Cresceu muito, está muito bonito e diverso. São histórias muito diversas sendo contadas por grandes artistas. É um momento de fato dourado para a produção, mas ainda precisa crescer em termos de venda e como chegar às pessoas.
Aos 10 anos de idade, você já tinha lido Lendas Africanas dos Orixás, clássico do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger. Em relação aos quadrinhos, Jack Kirby foi uma influência, passando por quadrinistas europeus e a obra de Edison Carneiro (escritor especializado em temas afro). Gostaria que você falasse sobre a sua formação acadêmica, e de como essas referências entraram na sua vida.
Minha formação oficial é como arquiteto da Faculdade Federal da Bahia. Trabalhei muitos anos como arquiteto, mas eu levei a arte por muito tempo em segundo plano porque a gente cresce ouvindo que não dá dinheiro e que isso não é vida. Ainda mais na Bahia. Às vezes, a maior realização de determinados pais é ver o filho funcionário público. Eu fiz concurso público. Inclusive, quando eu decidi me dedicar completamente a arte eu estava ocupando um cargo público, mas esse chamado, essa vocação, veio como uma forma de saber até onde eu poderia ir como artista e contador de histórias. O quadrinho é um caminho entre a comunicação e a expressão artística. Em 2012, eu fiz um curso de duas semanas em São Paulo que abriu a minha cabeça. Cheguei na Quanta Academia de Arte e vi que as pessoas trabalhavam com isso e viviam disso, que elas produziam a partir daquilo que elas gostavam com quadrinhos, animação.
Eu tenho 30 anos, e a formação da minha geração aqui sempre foi muito autodidata. Meus amigos que sempre fizeram quadrinho aqui são autodidatas, não teve uma escola. E a gente sempre debate que criar uma escola aqui seria lindo para explorar o nosso potencial criativo, com as histórias que nós temos e precisamos contar. Descobri isso quando fui para São Paulo. Isso mexeu muito com a minha cabeça, mas passei mais uns três anos como arquiteto ainda. Foi um período muito bom, tive minhas realizações, e que contribuiu muito para eu trabalhar hoje com o tema dos Orixás. Inclusive, trabalhava na Conder quando chegou ao meu setor aquele caso da depredação da Pedra de Xangô por radicais em 2014. Eu comecei a participar das reuniões, porque parece que a Conder era dona do terreno na época e queria fazer um parque, e pessoas de movimentos e religiões de matrizes africanas participavam delas. Nessa época eu comecei a tratar com essas questões no dia-a-dia, para além da fé e cultura, e entender que ainda hoje existe um conflito religioso muito grande nas periferias. Mas enfim, chegou um período que eu não estava mais satisfeito e muito por causa de "Contos de Mayrube", que era um projeto que eu tinha anos arrastando e não conseguia concluir. Deixei esse cargo, fui estudar em São Paulo e trabalhar como artista lá para entender como as coisas funcionavam. Passei quase dois anos lá e lancei "Mayrube". Essa foi a minha transição para trabalhar integralmente como artista.
Sobre as minhas influencias, como eu disse anteriormente, minha geração é muito autodidata. Hoje as coisas mudaram muito com a internet, mas eu tinha que comprar quadrinho no sebo que tinha na Estação da Lapa, na Coringa (que ficava na Carlos Gomes) e na Mutantes (que ficava no Largo Dois de Julho). Eu ia cavando esses quadrinhos da década de 1970 e 1980 que tinha uma estética que me agradava e era diferente do que era comum na época, que eram os heróis “bombados” em histórias sem cérebro da Image Comics. Eu tive um grande amigo que depois se tornou meu professor de faculdade, o Marcos Queirós, que era mais velho e amigo do meu pai. Ele era fã de quadrinhos e encadernar as edições que tinha. Ele me dava encadernados do Batman e do Superman dos anos 1970 da Ebal (Editora Brasil-América Limitada) para ler, por exemplo. A partir daí, comecei a formar meu repertório com mestres que desenhavam muito como John Buscema e Jack Kirby. Aquilo me fazia pirar porque Kirby trabalhava com mitologia, que é uma paixão que eu tenho desde criança. Eu não costumava desenhar o homem aranha, mas sim o Thor, os Eternos e os Novos Deuses, que nunca foram do mainstream. Quem criou os conceitos do quadrinho americano foi Jack Kirby. Tudo isso pirava muito a minha cabeça. Para além disso, os quadrinhos europeus também sempre foram uma influência, gente como Moebius e Sergio Toppi, artistas entre o mais iconográfico, sintético e realista.
Você falou anteriormente de "A Canção de Mayrube", um trabalho no qual você explora as mitologias que formaram a América e que tomou nove anos da sua vida. Para fazer esta obra, você precisou estudar a mitologia dos iorubás, por exemplo. Com o distanciamento do tempo, de que maneira você acredita que esse trabalho anterior acabou te ajudando a amadurecer ideias que você propõem em "Contos de Òrun Àiyé"?
"Mayrube" surgiu em 2007 ou 2008. Como alguém que gosta de mitologia, que leu o "Senhor dos Anéis" e adora toda essa coisa de fantasia épica, me inquietava o fato de não ter nada nesse sentido com a cultura brasileira. Na época não tinha nada, e eu comecei a construir "Mayrube" através disso. Era uma história que eu comecei a pesquisar e tentar entender lá em 2007 e 2008. O que mexeu muito comigo foi uma viagem que fiz em 2007, quando estava no primeiro ano da faculdade de arquitetura, para Mirandela que é a aldeia indígena do povo Kiriri, que fica no sertão perto de Banzaê e Ribeira do Pombal. Eu nem sabia que existia índio no nordeste da Bahia. Fui com aquele meu amigo, Marcos Queiros, meu pai e uma colega minha. Passei uns dois ou três dias lá, e o que mais me impressionou foi descobrir que meu avô, pai de minha mãe, nasceu lá quando eu voltei. Ele me contou isso já aos 96 anos. Isso mexeu muito comigo, a coisa da identidade. Nós não sabemos quem são os nossos antepassados no Brasil. A partir daí eu comecei a pensar no projeto, pesquisando. Eu tenho um universo pronto, com mais de mil páginas de conteúdo. Eu estava inclusive escrevendo um livro agora em agosto quando fui atravessado por essa ideia dos Orixás e parei. Mas "Mayrube" é universo que eu construí através de referências. Em 2011, eu fiz intercâmbio para a Espanha para me formar, e tive um contato ainda maior com as culturas e arquiteturas Incas e Astecas. Bem ou mal, o acervo está lá, e isso foi enriquecendo o meu repertório. O que é essencial já que eu ainda quero escrever essa história que remete a formação da América Latina. Essa estrutura grandiosa parece arrogante, mas a ideia é criar uma civilização miscigenada dentro do contexto de fantasia, que é e sempre foi muito eurocêntrica. Tolkien não tem negro. É legal, mas não mexe comigo, eu não vejo os nossos elementos. Não estou criticando, entendo que é o contexto dele. Agora, temos que fazer o nosso. O Game of Thrones do George R.R. Martin é muito mais diverso, o que é um sinal dos tempos, graças a Deus. As civilizações daquele mundo têm uma diversidade maior, mas ainda assim não são o centro daquelas histórias. Então, "Mayrube" sempre foi esse sonho que ainda está acontecendo. A pesquisa sobre a cultura iorubá entrou nesse contexto. O que eu ganhei muito pesquisando para esse trabalho ao decorrer desses anos foi que, por exemplo, quando eu parti para pesquisar sobre os Orixás eu tinha uma sistematização do que eu iria fazer, das etapas e do que eu iria fazer. "Mayrube" foi um universo que eu criei a partir de uma costura de culturas. Os "Contos de Òrun Àiye", não. É uma obra inspirada nas narrativas dos Orixás, e existe um limite muito claro do que eu posso ou não fazer. Me aconselharam a ficar restrito aos mitos, sem entrar em questões que envolvem os rituais. Tenho alguns consultores que me orientaram a pegar as histórias e trazer para a linguagem, contando dentro de uma estética, mas deixando de fora certas questões. Eu falei para eles que o que não me contassem o que não poderia ser explorado porque a cabeça no processo criativo absorve as coisas como uma esponja, até inconscientemente. Existe essa coisa delicada que precisa de um cuidado. Tanto que quando esse projeto começou a reverberar na internet, a primeira pessoa com quem conversei foi Russo Passapusso. Ele me alertou sobre o tema mexer com diáspora, hiperlink, e disse para eu ter cuidado com quem me procurasse para falar do assunto, que eu pedisse sempre que fosse feito de uma maneira responsável. Eu estava começando e essa conversa sempre meio que norteou esse projeto.
A tradição de religiões de matrizes africanas está muito ligada à oralidade. Dessa maneira, existe uma dificuldade de existirem relatos precisos das histórias que envolvem essas religiões com um todo. Qual estratégia você usou já que não existe no Brasil esse registro histórico para imprimir nos seus quadrinhos algo que remeta à essa historicidade dos Orixás e da própria construção da mitologia?
Minhas fontes são Verger, Reginaldo Prandi, José Beniste. Verger, por exemplo, fez toda essa coleta da história da África no Brasil. Eu me atenho muito aos escritos porque é onde eu posso, diante de uma escolha, dizer "olha, eu fiz dessa maneira porque nesse relato estava assim". Eu não me atenho ao cara me contar uma coisa porque existem muitas versões. Então, eu me atenho mais aos escritos. Por exemplo, existe o livro de um antropólogo baiano, o Fábio Lima, chamado 'A Diáspora e Ancestralidade". Ele esteve na Nigéria, e há relatos interessantes dele lá. Ele fala algo muito bonito: "No final entendi que a África que nós sonhamos está aqui na Bahia". A de lá não é mais a que a gente imagina. Então, é importante entender essa visão do orixaismo lá. Eu pego muito desses autores consagrados. Não trabalho em cima da obra de um específico porque acredito que seria até um plágio, mas eu trabalho com referências.
Quando você começou a produzir material abordando a temática não havia uma oferta tão grande de obras e autores trabalhando esses aspectos da nossa cultura. Contudo, houve uma mudança de cenário nesse sentido. Dos materiais produzidos para literatura ou quadrinhos, existe algum que tenha te conquistado de uma maneira especial?
Acredito que ainda existam poucos. Esse ano nós estivemos na Comic Con Experience (CCXP) e foi possível ver o quanto a cultura brasileira não penetra em certos espaços. A cultura Negra, Afro, Indígena e Luso Brasileira não penetra. Eu ficava observando vários artistas brasileiros só vendendo desenho do Batman, Superman e Mulher Maravilha. Você vai conversar com o cara e ele responde que só faz aquilo porque é o que vende no final das contas. Eu não tenho nada contra, até gosto, mas não desenho super-heróis. Meu tempo é curto, e ou eu desenho algo que eu identifico como meu ou escolho desenhar algo que é copyright de outro cara. Não estou criticando, a base da minha formação como artista foram esses gibis, mas é uma opção minha. Lá esse ano tinha, além de mim, o Alex Mir e o Caio Majado. Eles sim pioneiros que lançaram lá em 2010 o "Orixás - do Orum Ao Ayê", o primeiro quadrinho com a temática, se não me engano. Tinha um outro rapaz também, cujo nome me esqueci, que estava lançando um quadrinho fantástico chamado "Zé Pelintra", sobre o Exu na visão da Umbanda. Haviam outros caras com quadrinhos de temática indígena, mas éramos uns 10 em um universo de 500 artistas produzindo algo ligado à essas temáticas. Outro cara que é uma influência para mim é o PJ Pereira, autor de Deuses de Dois Mundos. Conversei brevemente com ele logo no início do projeto e ele me deu muitos conselhos.
Para concluir, eu gostaria que você avaliasse o contexto atual do mercado de quadrinhos brasileiro.
Houve uma explosão nos últimos sete anos. Os custos baixaram, o acesso a editoração, fechamento de design etc. As pessoas se qualificaram e muitos artistas independentes acabaram surgindo. Inclusive, movimentos feministas e LGBT's ganharam visibilidade e contando outras histórias. O Brasil sempre teve o grande problema de só absorver, e hoje muito menos, quadrinhos de super-heróis. O quadrinho europeu, que tem uma qualidade narrativa e estética impressionante, não entra aqui. Também existe a questão do álbum ser caríssimo de produzir. Então, nós fomos mal alimentados por muito tempo, e a tendência era reproduzir essas coisas. Depois veio o Mangá, que já abriu mais o nosso repertório e hoje está lindo de ver. Para você ter uma noção, em 2016, o Brasil produziu cerca de dois mil títulos diferentes. A França, que é o maior mercado do ocidente, lançou seis mil títulos no mesmo período. A diferença é que eles têm editoras e toda uma estrutura comercial. Aqui nós temos dois mil produzindo como eu, através de financiamento coletivo e engajamento do público, meio que empreendendo no risco de fazer e com algumas editoras mais sérias. Ainda é algo muito pulverizado, com produções muito individuais. O que impulsiona são eventos como a Gibicon (em Curitiba) e CCXP (em São Paulo), por exemplo. Então, cresceu muito, mas ainda falta ganhar musculatura no quesito de distribuição pelo país, por exemplo. Contudo, isso é natural. Nos Estados Unidos, até hoje, as editoras tem dificuldade com isso. Cresceu muito, está muito bonito e diverso. São histórias muito diversas sendo contadas por grandes artistas. É um momento de fato dourado para a produção, mas ainda precisa crescer em termos de venda e como chegar às pessoas.
Fonte/Bahia Notícias
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