Os cultos de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, atraem cada vez mais a população escolarizada do País
Paula Rocha (paularocha@istoe.com.br)
Em uma noite
fria na cidade de São Paulo, um grupo composto por advogados,
engenheiros, médicos e empresários se reúne em um salão amplo e bem
iluminado no segundo andar de um prédio, na zona leste da capital.
Vestidos de branco e carregando flores e velas, cada um deles está ali
por motivos distintos, mas com um objetivo em comum: louvar os orixás –
divindades africanas – e oferecer seus corpos como “casa” temporária
para espíritos de caboclos e outras entidades. Esse ritual, ou “gira” na
linguagem da umbanda, acontece quinzenalmente ao som de tambores e
cânticos e sob a orientação do médium Rubens Saraceni, sacerdote
umbandista. Além das profissões de prestígio dos frequentadores, outro
detalhe chama a atenção: entre os mais de 200 médiuns, de ambos os
sexos, presentes naquela noite, apenas três eram negros. A superioridade
branca desse terreiro é um sintoma da nova composição de fiéis das
religiões afro-brasileiras. Antes frequentados majoritariamente por
pessoas de origem humilde, baixa escolaridade e negros – grupo ligado à
origem desses ritos –, os cultos de matriz africana, como a umbanda, o
candomblé e a religião dos orixás (leia quadro com as características de
cada religião na pág. 53), conquistam cada vez mais a classe média
branca e escolarizada do País. Segundo os últimos dados do IBGE, 47% dos
adeptos das religiões afro no Brasil são brancos e 13% do total de
fiéis tem nível superior completo – índice acima da média nacional, de
11%.
A advogada Flora de Almeida, 29 anos, é o
retrato desse crescente tipo de devoto. Criada por pais católicos não
praticantes, ela sempre sentiu falta de professar uma religião. “Mas não
me sentia à vontade em instituições cheias de dogmas e regras nas quais
não acredito”, diz Flora. Em 2012, enquanto enfrentava o término de um
relacionamento amoroso, ela decidiu buscar apoio na umbanda, fez um
curso e começou a trabalhar em um terreiro. Meses depois, no entanto,
conheceu o candomblé e se apaixonou. Hoje ela é “filha” do sacerdote
Armando de Ogum e ainda está assimilando os conceitos de sua nova fé. “É
como se eu voltasse a ser criança. Tenho que aprender tudo do zero, e é
um aprendizado muito bonito. Fui acolhida dentro de uma família”, diz.
As religiões de matriz africana chegaram ao
Brasil entre os séculos XVI e XIX, trazidas pelos escravos, alguns
deles sacerdotes, que eram traficados para cá. Como, naquela época, a
única religião aceita no País era o catolicismo, os devotos dos orixás
tiveram que se comportar como cristãos, frequentando ritos e cultuando
santos católicos. Dessa mistura entre tradição africana e influência
europeia nasceu o candomblé – que une a devoção aos orixás com conceitos
da religião católica –e posteriormente a umbanda, misto de culto aos
orixás, com preceitos kardecistas e crenças indígenas. “As religiões
afro-brasileiras nasceram marginalizadas e, ao longo do tempo, foram
estabelecendo laços com pessoas influentes, que ajudavam a diminuir o
preconceito na sociedade em geral”, diz Reginaldo Prandi,
professor-sênior do departamento de sociologia da Universidade de São
Paulo (USP) e autor do livro “Mitologia dos Orixás”. “As pessoas de
classe média e alta já vêm se integrando aos cultos afro há muito tempo,
mas são discretas devido às suas posições sociais”, conta o sacerdote
Rubens Saraceni. “Mas essa integração, principalmente à umbanda, cresce
cada vez mais.”
Na esteira do aumento do grau de instrução
dos fiéis das religiões afro surgiram escolas e cursos de umbanda e
candomblé, que ensinam os conceitos teológicos por trás das atividades
praticadas nos centros religiosos. Já existe até uma faculdade de
teologia umbandista reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), a
Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). Outro setor que prospera com a
inserção dos mais abastados nos cultos de matriz africana é o do
comércio de artigos afro. Só a loja Mãe África, considerada a maior do
País, oferece mais de dois mil itens em 340 m2 de área – o mais caro
deles, uma peça em bronze que reproduz uma rainha iorubá (grupo étnico
africano), custa R$ 15 mil. “A ideia de que as religiões afro são coisa
de gente pouco instruída ou pobre está totalmente errada”, diz Prandi.
“Hoje, a camada mais pobre do Brasil, a base da pirâmide, é, em sua
maioria, evangélica.”
Nascida em uma família de classe média
católica e com ascendência oriental, a empresária Juliana Ogawa, 37
anos, presenciou de perto a mudança no perfil dos fiéis afro. Aos 13
anos, levada por um tio, ela procurou a umbanda pela primeira vez, atrás
de uma cura ou explicação para as dores de cabeça que sentia
constantemente, e que não foram diagnosticadas. Durante os sete anos
seguintes, ela se dedicou à religião, descobriu-se médium, mas abandonou
os rituais, procurou outras formas de exercer sua espiritualidade e só
voltou para a umbanda em 2009. “Antes, era raríssimo encontrar alguém
com ensino superior. Hoje, todas as pessoas da casa que frequento têm
terceiro grau completo”, conta Juliana. Assumir sua opção religiosa, no
entanto, não é mais fácil atualmente do que há duas décadas. “O
preconceito ainda existe e parece até pior do que antes, por conta do
avanço dos evangélicos neopentecostais, que são contra os cultos afro”,
diz ela. “Os neopentecostais tratam as religiões de matriz africana como
inimigas e esse intenso combate contribui para a evasão dos mais
humildes”, acrescenta Prandi.
Os novos fiéis de classe média, por sua
vez, fazem questão de não esconder sua religiosidade. Caso do médico
Rogério Pascale, 38 anos, seguidor da religião dos orixás há sete anos.
Toda vez que cumprimenta o Babá King, sacerdote do Templo Oduduwa, em
Mongaguá (SP), o clínico geral se ajoelha e encosta a testa no chão, em
sinal de reverência, mesmo que esteja dentro do hospital em que
trabalha. “Nessa religião não há julgamento e respeitamos as pessoas
pelo que elas são”, diz Pascale. “Aqui não importa quem ganha mais ou
menos. Somos todos iguais.”
Fotos: João Castellano/Ag. Istoé; FELIPE GABRIEL
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