O cientista americano Kevin Nelson explica ao site de VEJA o que acontece no cérebro de quem, na iminência da morte, relata ter antevisto o Além. E adianta: 'o mistério da espiritualidade continua'
"Ninguém tem todas as respostas. Essa é uma área que temos que pensar permanentemente. Nós precisamos continuar discutindo sobre como o cérebro realmente funciona"
No filme Além da Vida, dirigido por Clint Eastwood, a
jornalista vivida por Cécile de France é tragada por um tsunami na Ásia e
quase morre afogada. Na iminência da morte, a personagem enxerga vultos
de pessoas vagamente familiares sob uma luz difusa. Ao 'voltar à vida',
tem a impressão de que acaba de passar por uma experiência espiritual e
conclui ter antevisto o 'outro lado'. Todo ano acontecem incontáveis
casos assim: pessoas em risco de vida enxergam parentes e amigos
envoltos em luzes ou têm a sensação de sair do próprio corpo.
A ciência define estas experiências de quase morte como resultado da
diminuição do fluxo sanguíneo no cérebro, o que provoca alterações
momentâneas na mente. "Em casos de quase morte, os estados de
consciência podem se misturar, provocando reações como paralisia e
alucinações", explica o neurocientista americano Kevin Nelson, autor do
livro The Spiritual Doorway in the Brain - a Neurologist's Search for the God Experience (O Portal Espiritual no Cérebro - a Busca de um Neurologista pela Experiência Divina, sem previsão de lançamento no Brasil).
Na obra, Nelson explica a ciência por trás das experiências de quase
morte, mas não descarta o papel da fé e da espiritualidade. "Mesmo se
nós soubéssemos o que faz cada molécula cerebral durante uma experiência
de quase morte, ou qualquer outra experiência, o mistério da
espiritualidade continuaria." Em entrevista ao site de VEJA, Nelson
revela como nosso cérebro cria essas visões e diz que, apesar de tudo,
ainda espera que exista vida após a morte.
Mark Cornelison/ New Photo Tk
Por que os relatos de pacientes que passaram por situações de quase morte são tão parecidos?
Porque a causa é a mesma. A cada segundo, o cérebro regula a quantidade
de sangue que circula dentro dele. Se o fluxo sanguíneo diminui, o
cérebro encara isso como uma crise e aciona mecanismos que controlam a
passagem entre os estados de consciência. Normalmente, nosso cérebro tem
três estados de consciência: a vigília, quando estamos acordados, o
sono leve e o sono profundo. O cérebro mantém esses estados bem
separados. Mas o processo é diferente em pessoas que tiveram uma
experiência de quase morte. Nesses casos, em vez de passar diretamente
do sono para a vigília, o 'interruptor' pode misturar os estados de
consciência. Ou seja, ela não está totalmente dormindo e nem acordada.
Em um momento de crise, reações como paralisia e alucinações podem se
manifestar.
Como o senhor explica a sensação de estar fora do corpo ou a luz no fim do túnel?
Durante a experiência de quase morte, o sistema que ativa o sono pode
ser estimulado, desativando a região do cérebro ligada à percepção
espacial e causando essas experiências extracorpóreas. No caso da luz do
fim do túnel, quando o cérebro é privado de sangue - o que pode ocorrer no caso de um desmaio ou parada cardíaca -, o fluxo sanguíneo também diminui nos olhos, o que pode dar a impressão de que há um túnel com luzes borradas.
Há alguma diferença entre voltar da morte e a experiência de quase morte?
Para um neurologista, não existe essa opção de voltar da morte. Se o
seu cérebro está morto, você está morto. Quando o cérebro morre é porque
os neurônios morrem, as células nervosas morrem. O que acontece é que o
cérebro pode continuar a funcionar com sua capacidade limitada. É como
que só houvesse uma goteira de fluxo sanguíneo no cérebro. Em alguns
casos, podem pensar que o paciente morreu, mas não é o caso. O cérebro
continua bem vivo.
A experiência de quase morte só ocorre em pessoas que passam por situações limite?
Isso é interessante porque, na maioria das vezes, a experiência de
quase morte é causada por um desmaio. Sabemos que um desmaio pode
provocar uma experiência parecida com a de quase morte. Nos Estados
Unidos, um terço da população vai desmaiar alguma vez na vida, o que
torna a experiência de quase morte ou a experiência espiritual uma
situação comum. Ao observar os registros médicos das pessoas que tiveram
uma experiência de quase morte, apenas metade delas estava em perigo
médico real. Outra metade pensou estar em perigo, mas não estava em uma
situação médica grave.
O senhor acha que ciência e religião estão se aproximando?
Eu não acho que, nesse caso, a ciência e a religião estão em conflito.
Na verdade, estou interessado em saber como o cérebro funciona. A
ciência pode dizer como o cérebro funciona, mas não pode dizer por que
ele funciona desse jeito. Mesmo se nós soubéssemos o que faz cada
molécula cerebral durante uma experiência de quase morte, ou qualquer
outra experiência, o mistério da espiritualidade continuaria existindo. E
sempre haverá um espaço para a fé de cada um.
Qual o futuro da neurociência da espiritualidade?
Será muito empolgante. Hoje nós temos equipamentos para analisar o
cérebro com os quais nem poderíamos sonhar há vinte anos. Podemos ver de
perto como são as atividades cerebrais. Acho que a neurociência da
espiritualidade ainda está no início e que descobertas muito empolgantes
estão no nosso horizonte.
Qual a importância de entender as funções neurológicas da espiritualidade?
É muito importante. Ao entender como o cérebro funciona durante
experiências significativas é que poderemos saber verdadeiramente o que
significa ser humano, no sentido moderno.
O uso de drogas também pode provocar situações parecidas com a experiência de quase morte?
Sim. Por exemplo, a quetamina, que é um medicamento utilizado
rotineiramente como anestésico, pode causar experiência extracorpórea.
Mas não existe uma única droga capaz de produzir todo o fenômeno do que
pensamos ser a experiência de quase morte. Muitas pessoas têm
experiência de quase morte sem ter nenhum tipo de medicamento em seu
sistema.
Podemos dizer que o processo de experiência de quase morte é parecido com um sonho?
A experiência de quase morte usa frequentemente alguns dos mecanismos
utilizados nos sonhos. Mas não é correto comparar a experiência de quase
morte com o sonho que temos toda noite. As alucinações do processo de
quase morte podem parecer com sonhos lúcidos, que ocorrem enquanto as
pessoas estão conscientes.
Como o senhor se interessou pelo tema? Há trinta
anos, quando ainda era um residente de medicina, um paciente me trouxe
uma fotografia de uma cena que ele mesmo havia pintado após uma
experiência de quase morte. Na imagem, ele estava deitado no quarto da
UTI, e no pé da cama estava uma figura que representava o diabo. Entre
ele e o diabo, havia um anjo guardião. O diabo estava disposto a levar
sua alma. Jesus chegou e o salvou. Na ocasião, ele achou que toda essa
situação foi responsável por sua recuperação. E sentiu-se mais poderoso
por conta disso. Guardo esta foto até hoje.
Por que outros cientistas têm receio em abordar o assunto?
Infelizmente, neurologistas não tendem a se interessar por experiências
subjetivas. Eles estão muito mais interessados em olhar para as células
em um microscópio.
Seu trabalho pode ser considerado provocativo. E o senhor escreveu que pretende continuar provocando controvérsia. Por quê?
As pessoas têm várias perguntas. Ninguém tem todas as respostas. Essa é
uma área que temos que pensar permanentemente. Nós precisamos continuar
discutindo sobre como o cérebro realmente funciona.
O senhor acredita que existe vida após a morte? Eu realmente espero que exista.
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