É apaixonante observar o poder preditivo da matemática quando esta se baseia em princípios biológicos sólidos
Tanto durante o desenvolvimento embrionário como no indivíduo adulto, as células precisam saber onde estão, quantas são, com o quais outras devem interagir e quanto precisam proliferar para formar tecidos diferentes, com formas e tamanhos específicos. Isto exige que conversem entre si, através da comunicação celular, que nada mais senão a capacidade que todas as células têm de trocar informação físico-química com o meio ambiente e com outras células para poderem agir coordenadamente. Entretanto, ainda existem muitas dúvidas sobre este processo: como é a comunicação entre células adjacentes ou afastadas? Como são emitidos, recebidos e interpretados os sinais moleculares nesta comunicação? Estariam esses sinais orientados e direcionados para células mais predispostas à sua recepção? E a pergunta mais importante: como podemos influir nesse processo de comunicação? A matemática é uma ferramenta essencial para responder a essas questões de interesse biológico.
Em 1952, o matemático inglês Alan Turing estabeleceu as bases dos modelos matemáticos da morfogênese. Durante esse processo, a comunicação celular é fundamental, já que esses sinais controlam os códigos genéticos que fazem a célula modificar seu comportamento, ou mesmo sua mesma essência, para construir ou desenhar um padrão determinado (forma, tamanho, diferenciação histológica etc.). Turing atribuiu a formação de padrões a mecanismos de difusão desses sinais (especificamente ao movimento aleatório dos sinais, que aparece como resultado de interações com as moléculas do fluido extracelular) junto com processos de reação química entre elas (ativação ou repressão do sinal) no entorno das células.
Os números explicam o mundo
Nesta última década, o enorme avanço das técnicas de microscopia e o desenvolvimento de ferramentas moleculares permitiram acompanhar mais detalhadamente a dinâmica desses sinais, e graças a isso foi possível observar uma realidade bem diferente da intuída por Turing. O conhecimento atual nos leva a considerar que as células se comunicam por contato direto inclusive quando se encontram muito afastadas entre si. O processo de transferência de sinais se dá mediante extensões retráteis da membrana celular (denominadas filopódios ou nanotubos). A informação bioquímica a ser transmitida circula por essas estruturas, como ocorre durante a comunicação neuronal, no que parece ser um sistema genérico de comunicação.
A célula receptora interpreta os sinais mediante as chamadas rotas de sinalização, às quais se associam determinadas moléculas que agem desde início do estímulo para que as células respondam. Essas rotas são específicas para cada sinal, e cada uma regula a expressão de genes concretos. Entre elas, a rota de Hedgehog-Gli, na qual focamos nossa pesquisa, é fundamental durante o desenvolvimento animal e no crescimento tumoral. Neste processo estão envolvidos aspectos puramente mecânicos (a dinâmica de elongação e retração de filopódios, os fatores responsáveis pelo direcionamento da informação etc.) e aspectos moleculares, cujo resultado perfeitamente coordenado não dá chance à aleatoriedade.
Toda essa engrenagem perfeita pode ser modelada por equações diferenciais nas diversas escalas do processo (os tempos de transmissão do sinal e de reação da célula são diferentes, assim como o percurso espacial do sinal fora e dentro da célula), que permitem predizer e aprender com sua dinâmica. Os modelos matemáticos em biologia ajudam a revelar novos fenômenos, dinâmicas não esperadas ou padrões evolutivos, para formular e corroborar novos experimentos, e a direcioná-los na busca por respostas.
Protótipos
Neste caso, o conhecimento básico do micro e do nano nos possibilita estabelecer protótipos e transferi-los a uma escala macroscópica, a do tecido ou tumor. Com esses métodos podemos saber como se orientam os filopódios que medeiam a sinalização celular, quão específico é o processo em cada tipo de sinal e a possibilidade de que comportamentos celulares ou moleculares individuais derivem em um comportamento coletivo. Com interesses terapêuticos, essa modelação é chave para estabelecer os princípios para a identificação de novos inibidores ou promotores destas rotas de sinalização que, quando alteradas, causam patologias.
Assim, desenvolvimentos matemáticos como a teoria do potencial e as integrais singulares, as equações diferenciais aplicadas ao transporte sobre filamentos, o cálculo de variações e as propriedades de dispersão de fluxos saturados unem-se aos avanços em microscopia, à compreensão dos mecanismos moleculares da sinalização celular baseada na informação bioquímica e genética e ao estudo do comportamento celular coletivo. É apaixonante observar o poder de predição da matemática quando ela se baseia em princípios biológicos sólidos, permitindo caminhar por atalhos não explorados da ciência e liderar novas descobertas.
Isabel Guerrero é professora de Pesquisa do CSIC (Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha), Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, Universidade Autônoma de Madri.
Juan Soler é catedrático de Matemática Aplicada na Universidade de Granada.
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