
Tem um pastor midiático que carrega em sua luta, muita intolerância e argumentos como se ele fosse o dono da verdade.
Para justificar sua condenação dos homossexuais, ao contrário, o tal pastor
busca justificativas na ciência: explicações comportamentais, dados
genéticos, origens sociais e ambientais. Ele fala em cromossomos, em
traumas, um vocabulário, cá entre nós, bem pouco teológico. Percebam
queridos irmãos que os lideres religiosos modernos, recorrem a ciência
apenas quando lhe interessa, quando lhe
convém e apenas no que lhe convém. Quando o assunto é debater a validade
da Bíblia, se ela é ou não a "Palavra de Deus" e a verdade dos
movimentos cristãos da moda, ai todo mundo pula fora.
A grande
questão é que ele se dirige a um público bastante particular e, diria
eu, provavelmente numeroso, com proporção considerável entre seus fiéis.
Não me parece que ele esteja se dirigindo a uma malta histérica e
sanguinária de fundamentalistas religiosos, como levaria a crer seu tom
de voz e a já referida leviandade. E se ele faz isso, ora, é porque o
público ao qual se dirige tem algum nível de exigência por explicações
como essas, ou seja, faz questão de fundamentar suas opiniões e crenças
em dados empíricos. De fato, pesquisas e mais pesquisas reiteram que,
para a infelicidade de Silas e tantos outros, o público evangélico não é
nem tão homogêneo, nem muito menos tão intolerante quanto costumam
pintá-lo.
O crucial, neste momento, é entender a dimensão dessa
troca de papéis: O pastor midiático, por sua própria iniciativa, apresenta como
credencial não a espiritualidade, mas a ciência. "A razão", poderíamos
dizer, se estivéssemos com pressa de fazer juízos. Mas não estamos com
pressa. Por enquanto, tudo que quero expressar é que, ao se colocar como
homem de ciência, ainda que pseudociência, um indivíduo, pastor ou
não, se submete de livre e espontânea vontade ao risco de refutação e à
exigência de rigor metodológico. Observe que este senhor em seus programas não recorre à
ciência simplesmente como citação. Contra Jean Wyllys, por exemplo, que é
historiador por formação, o pastor tenta a carteirada do argumento de
autoridade: "eu sou psicólogo".
Isso é verdade mesmo para
alguém que, paralelamente, ainda pode tentar a carteirada inversa, ou
seja, reafirmar-se como autoridade religiosa, com uma posição inicial
inflexível que coloca, desde o início, fora do alcance o tal rigor
metodológico. Isso é extraordinário, porque é uma situação paradoxal, um
beco sem saída em que ninguém o obrigou a entrar. Ele se coloca na
discussão não como pastor, não como intérprete ou defensor das
Escrituras, mas como psicólogo, ou seja, como autoridade científica!
Sim, verdade, um psicólogo de formação não é necessariamente um
cientista; pode muito bem, por exemplo, ser um profissional de RH ou
trabalhar com marketing. Mas não é como o pastor se apresenta: ele busca
usar sua condição de bacharel em psicologia para se passar por
cientista, ainda que isso, normalmente, exigisse publicações na área,
entre outras coisas. E ai vemos sempre a esperteza desse pessoal que
querem criar impérios que eles chamam a toda hora de "a grade obra", que
obra e pra quem, o que fica-nos claro muito mais é o poder econômico,
mas, o que eles querem dizer afinal não fica bem claro...
O pastor da igreja que ele criou, uma dissidência de outra mais antiga, uma igreja
herdeira dos avivamentos do século XIX, nos EUA e, por isso mesmo, uma
religião de culto, ou seja, da experiência direta e individual do
divino. Essas religiões, pentecostais e neopentecostais, recusam tanto
quanto possível as exigências de discussão teológica, do estabelecimento
de dogmáticas e da observância estrita de liturgias - elementos
vigorosamente criticados nas religiões à época já estabelecidas. Nesse
contexto, o pastor midiático é um líder espiritual, de fato e de direito, numa
estrutura em que o direito decorre imediatamente do fato. Em outras
palavras, ele tem seguidores, por isso é líder. Não há chancela de
autoridade formal e hierarquizada, como no caso do catolicismo, por
exemplo. Essa posição de líder espiritual, nem preciso dizer, é muito
forte. Sem embargo de toda essa força, o pastor não consegue se bastar
nessa posição.
Se ainda fosse líder apenas espiritual,
especificamente no estilo de John Newton ou Luigi Francescon, ele
poderia deixar de lado o recurso à genética e fazer valer sua visão de
mundo pela força da autoridade religiosa. Mas não é o que acontece,
provavelmente porque já não são muitos os que estão dispostos a
discriminar vizinhos só porque alguém poderoso diz que deve ser assim.
Quando falamos em retorno do sentimento religioso, geralmente não
sabemos muito bem que sentimento religioso é esse que está voltando. Mas
se colocamos isso em questão, a dúvida passa a ser relativa à ideia de
que algo esteja mesmo voltando, isto é, que uma religiosidade do passado
saiu de cena, mas agora retorna tal e qual. Afinal, se encararmos as
manifestações religiosas de hoje, será que enxergamos um retrato fiel da
religiosidade de meio século atrás - ou um século inteiro, ou dois.? E
não basta responder que não, porque seria igualmente possível entender o
retorno do religioso como o renascimento do espírito místico inerente
ao humano, ou seja, sua atração pelo transcendente.
Sem
esquecer, é claro, que o pastor, pelo histórico de sua religião, não
pode recorrer àquelas formulações teológicas que renderam tantos
embates, até guerras, entre protestantes e católicos, católicos e
católicos, protestantes e protestantes. Como resultado, o pastor, ao se
entregar a incursões clamorosas no debate público, flutua entre inúmeros
campos distintos, sem conseguir ancorar-se a nenhum deles: o
pentecostal, o teológico-dogmático, o psicológico, o cromossômico. A
sede, o sonho de transcendência, pode manifestar-se de uma infinidade de
maneiras. Nas catedrais góticas, nas construções harmônicas de Bach,
nos sacrifícios de São Francisco de Assis, na voz dos pastores que
entoam espiritual; mas também na conquista do espaço infinito, no desejo
de dominar o mundo, no patriotismo cego, na fé inabalável de que são
objeto o progresso, a propriedade, o mercado, a revolução. E o
misticismo pode tanto ser monacal quanto pentecostal quanto psicodélico
quanto druídico quanto futebolístico.
Estamos, então, diante de
um caso de preceitos religiosos que buscam, porque precisam, se
justificar na ciência. E pensar que, por séculos e séculos, o mecanismo
das relações entre ciência e religião se orientou por uma lógica
rigorosamente inversa! Mesmo com todas as suas revoluções, suas
acusações de heresia, da Idade Média até fins do século XVIII o que
impulsionou a ciência foi a submissão a Deus, declarada e irrenunciável!
Quando leio sobre a participação de religiosos nos debates em torno de
casamento homoafetivo, aborto, eutanásia e assim por diante, sempre me
vem à mente o célebre trecho de Mateus com o "a César o que é de César".
Belo preceito do cristianismo, que faz grande falta a outras religiões
semelhantes. Mas muito difícil de cumprir. Tudo vai bem quando César e
Deus estão, ou parecem estar, lado a lado, seja num Estado teocrático,
seja a partir da crença, absolutamente majoritária até o século XVII, de
que o poder do soberano emana diretamente de Deus. Em outras situações,
o cumprimento é bem mais difícil, porque exige do fiel que tome
atitudes que vão frontalmente de encontro a suas convicções. Ou, pelo
menos, que ele aceite, e até apoie, legislação que contradiga suas
crenças. Por outro lado, se entendemos que o que está voltando não é
exatamente um sentimento, mas um fato de ordem política, um poder
normativo atribuído às religiões, então me parece que posturas como a desse pastor, dos psicólogos curadores de homossexuais e até, muitas vezes,
do Vaticano - como quando, por exemplo, padres tentam argumentar que
estupros não provocam gravidez, ou quando encíclicas papais insistem na
interdependência estreita entre fé e razão - desmentem essa noção. Algo
fundamental para o funcionamento de um tal poder parece ter se quebrado,
dentro mesmo da mente dos fiéis, no comportamento daqueles que creem.
Eu diria que é a disposição para remover do caminho do dogma tudo que
tenha qualquer outra fonte de legitimação.